21/09/2015

Com frequência - Crônica 59


Acontece com muito mais frequência do que eu gostaria. Seja com minha noiva, com os amigos ou sozinho, sempre tem alguém que se aproxima, me cumprimenta, conversa comigo como se fosse alguém da família, do meu passado – que muitas vezes não me lembro, sinceramente –, alguém que me conhece como a palma da mão... e que eu não faço a menor ideia de quem seja. A pessoa chega, me chama pelo nome com o maior dos sorrisos, conversa, ou me atende super bem se eu estiver em algum lugar, numa loja, um restaurante, enfim. E eu? Com aquela cara de “oh meu amigo, e aí, tudo bem?” Mas, eu sei quem é ou como se chama? Negativo! Não faço a menor ideia. Não por desprezo ou falta de atenção. Só não sei quem é, e minha timidez impede que eu pergunte o nome.

Um dos casos mais complexos e curiosos desse tipo: uma garota vem andando atrás de mim enquanto estou sentado assistindo um jogo de vôlei. É caso real. Dessa vez não é ficção. Sei que isso acontece com todo mundo. Mas, comigo é com uma frequência impressionante e constrangedora.
Enfim, essa garota fala comigo enquanto ainda estou de costas. Solta umas três ou quatro frases. Como eu não reconheço a voz, não me viro imediatamente para vê-la. De repente ela se senta ao meu lado com aquele sorriso de orelha a orelha.

“Oi Marco, tudo bem”? “Tudo ótimo. E com você”? “Tudo certo”. Uffa, essa passou perto, penso eu.

E a conversa continua como se fossemos velhos amigos. Ela, cabelo castanho e, na ocasião, cumprido como o meu, mesma tonalidade, volume e comprimento, quase da minha altura. Uma versão feminina muito parecida comigo, diga-se de passagem.
Meia hora de conversa jogada fora. Só faltou um cafezinho. Conversamos sobre tudo, e eu ainda não saiba quem era a garota. Chutava centenas de nomes em minha cabeça, e nada. Prestava atenção a cada sílaba, palavra e tom da sua voz, só pra tentar lembrar alguma coisa. E nada. Tentava conectar todos os assuntos e situar nós dois em algum momento da vida que fizesse me lembrar dela. Mas, nada. Já estava desesperado. Sorriso daqui, sorriso dali, gargalhada... Aquela boca vermelha e rosada de lábios finos. Olhos castanhos com um leve tom esverdeado à luz do sol, como os meus, diga-se de passagem. Mas, ainda não. Nada ainda.

“Você não está me reconhecendo, não é?”, perguntou. “Claro que sim”, respondi sorrindo e tentando desviar o olhar. E continuei, com a maior sinceridade: “não, desculpe. Não faço a menor ideia de quem seja você ou por que nos conhecemos”.


Ela continuou sorrindo, e eu, quase a ponto de implorar pra saber quem era ela. Mas, continuou falando: “Marco, sou eu, Paula”. “Oh, mas é claro”, respondi, como se soubesse. Sempre menti muito bem. Mas, dessa vez eu queria mesmo saber quem era ela. “Lembrou de mim?”, perguntou. “Não!”, e demos mais risadas. Nisso já tinha se passado mais uns dez minutos.
Então, como quem tivesse certeza absoluta do que estava fazendo, e com certeza tinha, começou tentar deliberadamente a me lembrar de quem era ela. Disse que fizemos catequese juntos e que sentávamos juntos às vezes (sim, fiz catequese; deveria ter perdido meu tempo com outras coisas, mas...), falou que sabia onde eu morava nessa época, pois morava perto. E eu ali, de boca aberta. Até aí, tudo bem, não me lembro de muita coisa mesmo. Acabei excluindo tanta informação que me lembro de poucas pessoas do meu passado. Mas, para espanto ainda maior, ela descreveu exatamente como era meu corte de cabelo – estilo militar até os onze ou doze anos, depois deixei crescer –, descreveu como eu me vestia, e o último prego no caixão: descreveu com riqueza de detalhes o meu quarto.
Agora a coisa havia ficado séria. Não tinha mais sorrisinho da minha parte. Eu estava preocupado. Será que ela me conhecia assim mesmo? Mas que diabos... Quem era essa garota. Eu fiquei ali, chocado, com aquele sorriso amarelo, morrendo de vergonha de dizer que, mesmo ela tendo rezado todos os detalhes da minha vida até então, eu ainda não me lembrava dela.
Depois disso? Ela sumiu. Não a vi durante anos. Reapareceu certa vez, em público. Conversou comigo, apresentei minha noiva a ela, perguntou se eu ainda estava lecionando e disse ter visto um de meus livros. Não consigo me lembrar dela antes daquela primeira conversa.
Depois disso? Sumiu de novo.

Uma curiosidade: neste meio tempo, certa vez a reencontrei trabalhando em um lugar ao lado do meu. Dessa vez eu não deixei passar. Chamei-a pelo nome todos os dias demonstrando que eu sabia quem era ela. Conversávamos, dávamos risada. Passou-se mais ou menos um ano. Obviamente, não passávamos de conhecidos que acabaram de se reconhecer. Um amigo me para e pergunta: “por que você fica a chamando de Paula”? “Quem”?, eu pergunto. “Ela”, aponta ele com a cabeça, “o nome dela não é Paula”.
Sim. Passei um ano, das dezesseis às dezoito horas, de segunda à sexta-feira chamando uma garota pelo o nome de outra com a certeza absoluta de que fosse a mesma pessoa.

Às vezes me pego tentando me lembrar de alguma coisa. Mas, não adianta.

Enfim, é fato que esse tipo de coisa acontece com todo mundo. Tenho certeza.
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Forte abraço.

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