Latidos
intermináveis e aquele choro característico de cachorro brigando. Mas, não com
outro cachorro. Cachorro chorando, apanhando de gente. Vou para a rua e tem
esse cara batendo no cachorro com toda a força que seu braço pode aguentar. Uma
mulher corre em sua direção. Vestia short vermelho, curtinho, e uma camisa
branca, cavada. Cabelos longamente pretos e lisos até a cintura. Correu, e
pensei, “que ótimo”, pois, tive certeza de que ela acabaria com aquela violência
desmedida. Mas, não. Não correu pra isso. Chegou perto, o cachorro aos gritos,
e batei como pode em sua cabeça. Tentei ligar para a polícia, andando rápido
para a rua em direção aos dois. Agora o homem ergue o cachorro pelo pescoço,
enforcando-o, e anda pela rua como se este fosse seu troféu, enquanto sorri,
sem camisa.
Andei rápido
para alcançá-lo, com o telefone na mão, ainda tentando dar queixa da violência.
Ele entra em uma casa, ainda enforcando o cachorro, eu entro junto, resmungando
qualquer coisa. Ruazinha normal, como em todo bairro suburbano, com poucas
árvores, postes com fiação a mostra acima das calçadas, casas com os portões
dos mais variados.
Entro na casa
e me pego em desespero procurando por alguém. Esse alguém deve ser muito
especial pra mim, tendo em vista minha necessidade incompreensível de
encontrá-la. Uma mulher. Não sei ao certo quem, mas quero encontrá-la, com
urgência, com medo de não conseguir a tempo.
Casa normal
também. Nada de especial, a não ser pelo tom de cor das paredes, um tom de
verde claro, tão claro que é quase imperceptível, muito leve, mas, sei que é
verde, com iluminação por luminárias nos corredores. Não sei por que ou se isso
interessa. Tanto faz. Mas, o desespero por encontrar essa mulher só aumenta.
Alguém, aos prantos,
me indica a porta de um dos quartos. Eu esmurro a porta, com lágrimas nos
olhos, implorando para a mulher não tirar sua própria vida. Não quero que ela
se mate, de jeito nenhum. Não teria motivo. É uma escolha drástica, uma atitude
impensada, talvez. Continuo chorando e implorando para que abra a porta e me
deixe entrar para consolá-la. Mas, nada.
Quando,
finalmente, a porta se abre, tento entrar o mais rápido que posso. Alguém
saindo do quarto barra minha passagem. Um médico, gordo, meia idade. Ele não
diz nada, nem mesmo olha pra mim. Sai pela porta olhando para o chão, como quem
estivesse cansado, mas, transmitindo ter dado tudo certo.
Entro. A
mulher não está morta. Está ali, em pé, olhando pra mim. Caminhando em minha
direção, mas, sem dizer uma só palavra. Sangue por todos os lados. Uma cama de
hospital encostada a uma das paredes do quarto, empapada de sangue, assim como
a parede, como se pegassem um balde de tinta vermelha e jogassem alegremente na
parede tentando o melhor resultado. Vertigem.
A mulher anda
pelo quarto, me ignorando. Tento entender o que houve, por que tanto sangue e
ela ali, em pé, vestindo avental hospitalar, ensanguentada, assim como o chão,
a parede, a cama, as roupas, os lençóis... Tudo em vermelho vivo.
Quando chego
ao banheiro, no quarto, amais sangue pelo chão e encima da pia. Uma pia grande.
Pia de banheiro, mas, maior que o normal. Uma toalha azul escura, escura pelo
sangue, servindo de embrulho. Finalmente compreendo o que houve, mas, não quero
aceitar. Um aborto numa hora destas? Por quê? Para quê? Uma tristeza insalubre
toma minha consciência. Desespero.
Não posso
acreditar. A mulher ali, em pé, zanzando pelo quarto. Eu nem ao menos sei quem
é essa mulher de cabelo curto, loiro mal tingido. Não conheço essa casa. Quero
abrir a toalha embrulhada, mas sei que é uma criança abortada ali, sobre a pia.
Não quero essa imagem. Não sei quem é a mulher, o médico, a criança, o homem, a
mulher de short vermelho curto e cabelo na cintura, não sei quem é o cachorro;
não sei onde é esta rua, de quem é a casa ou quem teve a ideia de pintar as
paredes de verde claro.
Porém, sei
que não fui capaz de impedir os maltratos. Não consegui impedir o aborto
disfarçado de suicídio. Volto a dormir, em paz, embrulhado em uma toalha sobre
a pia.
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