18/09/2013

Memórias de um travesseiro - Crônica 47

Um dos fatos da vida, daquele tipo que não se consegue passar batido, que não se consegue fazer de conta que não é verdade... Quando se deita na cama, com a cabeça no travesseiro, e tudo o que se tem na mente volta como uma tormenta; passa diante dos olhos como um longametragem dantesco.

― Passo o dia todo tentando esquecer, mas quando chego em casa, quando me deito na cama, aquela voz de não se sabe onde vem me torturar. Parece vir das paredes, do teto, do chuveiro quando estou no banho. Parece vir da água que desce pelo encanamento velho chovendo em minha cabeça, correndo por meus ouvidos e gritando sentimentos confusos. Voltar para casa é lamentar a verdade que só existe aqui dentro. Vozes que me perseguem ao som de uma marcha fúnebre, ou um contínuo rítmico de caixa de bateria, sabe, no melhor estilo Sunday Bloody Sunday. Insônia, claro. Pesadelo. Delírio noturno irremediável. Há anos me sinto assim. Muitos já teriam passado o laço ao redor do pescoço. Mas eu, não. Eu não... Ainda não, eu acho. Mas é mesmo perturbador. Vozes que me acordam durante os poucos minutos que consigo pegar no sono. Há anos nunca durmo de verdade, uma noite inteira, seis, sete horas. São sempre fragmentos, cochilos relâmpagos. Não dá pra nada. Não dá tempo nem de lubrificar os olhos. Levanto quebrado em todas as manhãs. Ainda sinto um leve cheiro de corpo na minha cama. Cheiro de prazer, de sexo. Cheiro de lágrimas, de suor. Cheiro de exaustão. E logo em seguida sinto o cheiro do quarto vazio. De dezenas intermináveis de tantas pessoas que já passaram por aqui, e deixaram suas marcas, seus odores, seus arranhões, mordidas, deixaram seu sangue em meus lençóis. Agora, quando ponho a cabeça no travesseiro, lá estão as lembranças. Memórias profundas de paixões, alegrias e lamentações que me perseguem. Memórias de um travesseiro, um confessionário em forma de cama. Memórias no colchão, nas paredes, nos móveis. Quando inspiro fundo, suavemente, posso sentir o cheiro do corpo de cada uma delas. Está tudo registrado neste saco de plumas de ganso. Plumas fajutas. Saco de plumas condenado. Saco de plumas que me condena. Há tantos fios de cabelo na minha cama... Já não sei quais são meus. Cabelos de todas as cores, todos os tamanhos. Fios tão longos quanto às cicatrizes que deixaram e minhas costas, no meu peito. Alguns tão curtos quanto o sorriso tímido das mulheres mais lindas. Fios tão claros quanto minhas noites de insônia, e tão escuros quanto meus dias de solidão. Volto para casa, com a vontade de não voltar. Por que você não cala a boca, maldito? Por que ainda insisto em descansar minha cabeça em você? Porque ainda não te joguei no lixo, ou te incinerei junto dos lençóis e roupas tão marcados quanto você? A sensação que tenho quando me deito com a cabeça no travesseiro, é como se centenas de mãos e pernas me prendessem à cama, como correntes tão quentes quanto o fogo. Algumas tão frias quanto o passado. Uma sensação de mãos segurando minha cabeça, tapando minha boca enquanto me puxam para baixo sem me deixar gritar socorro. Sem me deixarem chamar seus nomes. O travesseiro me julga. O passado me julga. Os nomes em minha mente e as lembranças sustentam minha insônia. Sustentam minha demência... A abundância de insanidade por trás dos meus olhos. Minhas noites parecem com o velho blues lamentoso, decadente, que marca o ritmo com a batida dos sapatos feitos de sola de pneu rasgado. Sabe como é mister Jones. A diferença é que eu sei exatamente o que é.


― Sabe mesmo? Acho que não. Se soubesse, não me ouviria mais, imprestável. Se soubesse, já teria me calado? Já não teria me jogado fora e me trocado por outro mais novo... virgem? Já não teria me trocado por outro útero vazio para encher de novas bobagens? Não me agrada ser um depósito de lixo mental, humano... Um contêiner de excremento em forma de lembrança desta centena de corpos que metem a cabeça sobre meu corpo. Quando suas cabeças, não é mesmo?! Vez ou outra eu sirvo de apoio para deitarem à coluna lombar enquanto você dá a elas algumas horas de prazer oral. Meu corpo ensopado com o prazer de cada uma. Se suas lembranças são ruins, imagine as minhas. Cometeria suicídio se eu pudesse. Enquanto isso, só me resta te lembrar a quantidade de desolação que existe entre estas paredes. Romântico demais? Lembranças demais em poucas horas para uma vida toda. Se acha que suas memórias são pesadas, imagine a consciência de todos os travesseiros de todas as mulheres que já deitaram suas cabeças e seus corpos sobre o meu. Cada fio de cabeço que você não reconhece espalhados pelo quarto, cada arranhão em suas costas e peito, cada mordida em seus lábios... Tudo não passa de horas a mais de insônia por conta das lembranças. E não adianta mudar os móveis de lugar, virar o colchão ao contrário, pintar as paredes, lavar todas as roupas de cama ou rezar a missa negra. Tudo continuará do mesmo jeito. Sempre que fechar seus olhos, dezenas de outras vozes e memórias estarão por aqui, rondando sua cabeça, remoendo o passado em busca de respostas para as perguntas às quais você ainda não fez. Enquanto isso, eu enxugo as lágrimas de prazer e os orgasmos derramados em minhas plumas, enquanto me preparo para calar sua boca durante a noite, de novo e de novo, e trazer de volta as centenas de mãos e penas que te puxam para baixo enquanto você grita com a voz abafada.

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18‎ de ‎Setembro‎ de ‎2013.

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