Um relato para além do aquário.
― Eu senti tudo. Todos os sentimentos humanos sendo absorvidos por meu
corpo. Eu tentava gritar, mas parecia em vão. Tentei esmurrar a lataria, mas parecia que
eu não possuía cem gramas de força sequer. O tempo estava parado, completamente
parado. Minha mãe no banco do motorista, já desacordada, minando sangue; minha
irmã ao lado dela, no bando do passageiro; dava pra ver o que restou do cérebro
misturado a fragmento de ossos e cabelo espalhados pelo teto de ferragem
distorcida.
Eu estou no banco de trás, um pouco entorpecida por conta do acidente.
Grito. Eu grito cada vez mais alto. Mas minha voz não sai, e o tempo continua
congelado. A queda parece não ter fim... Mas a ponte não é tão alta.
Estou menos sonolenta, com a adrenalina tomando conta do meu ser. Grito
por minha mãe e chacoalho seus ombros e cabeça com violência, para que acorde.
Estou tentando soltar meu sinto de segurança, mas está emperrado. A cabeça de
minha irmã aberta como uma flor desabrochada no verão, e eu evitando a todo
custo olhar para aquela cena. Ninguém por perto. Nem ao menos sei o que houve
com o caminhão no qual batemos. Há tanto sangue espalhado que forma um chuvisco
vermelho para fora do carro. Consigo ver as gotas ainda no ar, enquanto caímos.
Entendi por que pareço não conseguir gritar. Meu maxilar está em pedaços,
praticamente esfarelado. Agora vejo por que sinto tanta dor. Com o susto,
tentei por minha língua dependurada, com as mãos, de volta ao que restou de
minha boca. O desespero toma conta de mim. Uma cena mais aterrorizante que a
outra. Nosso carro ainda caindo, congelado no ar, e minhas lágrimas vertendo
como torrentes de meus olhos, tentando encontrar uma saída.
Um barulho altíssimo, que ecoa em minha cabeça. Finalmente caímos. A
altura da ponte em relação ao rio não é tão grande, mas mesmo assim há muito
barulho. Ainda aflita, tento não morrer afogada. A água invade rapidamente o
carro, e parece lavar das paredes e ferragem a tintura cerebral e viscosa de
minha irmã.
Estou engolindo muita água. O gosto é terrível. Pesado. Um gosto de
agonia. Gosto de caixão. Minha consciência está diminuindo rapidamente. Sinto o
gosto da água, como quando tomamos banho e engolimos pouco sem querer. E eu que
gostava tanto de tomar banho de chuva. Era uma verdadeira amante da chuva, da
água. Mas aqui tudo está diferente. A luminosidade do sol sendo refletido
dentro do rio, que tanto era linda, diminui a cada metro que afundamos. Não são
apenas os raios solares que perdem força. Meus olhos também, e já começo ter
dificuldade para enxergar.
Mais um barulho. Este, porém, abafado. Chegamos ao fundo do rio. É sereno
aqui em baixo. Uma
tranqüilidade sem igual. Sinto meu coração batendo forte, muito forte, tentando
consumir cada milímetro restante de oxigênio em meu sangue. O mesmo acontece
com meus pulmões. Não agüento mais. Quero respirar... Ainda, desesperada. Mas
não posso... Não consigo.
Sinto a água entrando em meus pulmões. Pesada. Não há mais luz do sol
aqui embaixo. Ou não há, ou já não enxergo mais.
Alguns últimos goles forçados tentando buscar oxigênio. Meus olhos tremem
como num colapso. Meu corpo todo treme, e tenho espasmos nos membros inferiores
e superiores.
Sei que parece uma eternidade. Mas, está acontecendo tudo tão rápido, e
sinto cada detalhe em meu corpo e meu arredor. Para quem tinha dúvidas sobre
como é sentir a morte chegar, está aqui explicado. Estou morta junto de minha
mãe e irmã há muitos dias, não sei bem quanto ao certo. Mas já não há muita
pele recobrindo nossos corpos, pois os peixes já se encarregaram de matar a
fome. Suas bocas se esfregam com muita voracidade em nossa carne. Faz cócegas.
Mas é triste.
Que pena. Infelizmente não reencontrei minha querida amiga Rebeca. Ela
faz falta aqui embaixo. Estamos em um verdadeiro aquário. Sinto falta dela
comigo aqui embaixo.
Quem sabe minha memória esteja ainda presente. Quem sabe as pessoas ainda
leiam minhas palavras. Quem sabe elas ainda se lembrem como foi minha morte.
***
Extraído do livro “Rebeca. Alguns não pecam por nada”!
Capítulo 7. Marco Buzetto. Copacabana Books, São Paulo: 2013. ISBN:
978-85-63912-01-5
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