Crônica Seis
Precipício não era apenas um reino. Era um local sagrado, onde as pessoas se reuniam para resolver seus problemas mais pesados, mais demorados, mais sangrentos e vergonhosos.
O Rei deste lugar não se importava com a movimentação crescente, com o fluxo de pessoas que freqüentavam seu império. Não! Nada disso. Ele realmente gostava daquela quantidade de pessoas indo e vindo de lá para cá em seu reino. Era feliz assim; todos eram felizes desta maneira.
-- Levantem-se! Todos serão felizes aqui, em Precipício. – gritava o governador daquelas terras. Comam, bebam, sejam felizes.
Lá não havia tristeza, apesar dos problemas de todos. Podíamos resolver qualquer coisa da maneira mais fácil. Precipício tinha um clima bom, apaziguador. Todos gritavam isto aos visitantes e pela vizinhança afora. E quando estes visitavam o lugar, percebiam que não havia mentira naquelas palavras gritadas ao vento.
-- Todos terão sua vez, meus filhos. Não fiquem tristes, pois aqui não é lugar para isso. Existe um farto banquete em meus salões. Então, festejem e comemorem sua conquista. – dizia o Rei.
Neste reino havia tudo o que uma pessoa precisasse para o resto de sua vida. Havia comida farta, bebida da melhor qualidade, mulheres aos homens e homens às mulheres. Havia jogos para as crianças, lendas, histórias. Tudo era possível ser encontrado em Precipício.
-- Eis o local sagrado que os deuses desejam, mas nunca freqüentam. Apenas um deles aqui chegou, festeiro, alegre, decidido. O deus único. Sim, aquele deus de pouco mais de dois mil anos de idade. Ficara tão feliz com o que encontrou, que nunca mais fora embora. O deus único e verdadeiro. Este sim fora corajoso. Ele trouxe consigo um amigo tão belo quanto ele próprio, de tom avermelhado, com dois cornos em sua testa e com um sorriso delicado e feminino. De início pensei que fosse sua parceira, mas lembrei-me de que este deus era divino demais para ter uma mulher ao lado. Vi então que era seu mais precioso amigo e o mais fiel inimigo. Porém, este não permanecera aqui por muito tempo. Preferiu tomar conta dos negócios, enquanto o outro aqui permanecia.
Não havia homem forte o bastante que não adentrasse os portões de Precipício, tampouco mulher corajosa e dedicada que não fizesse o mesmo. Não havia rico nem pobre que não quisesse sua vez aqui. Era o único lugar na Terra que não distinguia as pessoas: advogados, juízes, professores, religiosos, vagabundos, alcoólatras, ladrões, assassinos, homens, mulheres, crianças, insanos ou sãos, inocentes ou culpados. Não havia distinção. Todos recebiam o mesmo tratamento.
-- Aqui é o verdadeiro paraíso. O paraíso dos Homens. A herança dos deuses. Aqui é onde vocês, dedicados, podem resolver qualquer problema. Pois ao menos estes são diferentes, ou um mais importante que o outro. São todos iguais em Precipício. Este é o valor dos Homens. Esta é sua morada, seu teto, seu refúgio.
Este sim era um homem feliz. O Rei de Precipício sempre soube o que dizer para animar seus súditos e visitantes. Este sim era um homem íntegro, justo, que não distinguia cores e sexo.
Este era o lugar no qual todas as pessoas se sentiam melhor. Este era o lugar do qual todos falavam. Este sim era o lugar certo para os Homens. Se até mesmo aquele deus solitário esteve por aqui... Os Homens e suas derrotas e mentiras também estarão.
E continuava o Rei, com sua voz cada vez mais forte e convidativa, a qual todos podiam ouvir perfeitamente, sem ruídos, sem desafino:
-- Bem-vindos à Precipício!
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