Crônica Um
Eram verdadeiramente pesadas aquelas gotas que desciam pelo meu corpo, de minha cabeça, minha boca... Do corpo até as mãos. Via o dia amanhecendo gradualmente, enquanto me carregava nas costas; via e ouvia os primeiros pássaros cantarem, despertando o resto da floresta. Em minha visão também eram nítidas as gotas do orvalho sobre a relva – algumas gotejavam das folhas mais distantes em altitude vindas dos sábios carvalhos.
Bom, é verdade, não posso negar que eu não estava sozinho. Havia outros que se juntavam a mim pelo caminho, também carregados pelo tempo. Porém, coisas aconteciam apenas comigo, imagino. Algumas coisas tingidas de vermelho escuro. A cada passo que eu o acompanhava, o dia amanhecia ainda mais. Saiamos antes de o sol nascer, e guardava-nos com ele já retirado do horizonte gelado entre as montanhas. Quase não percebia a luz do dia que se refletia sobre mim.
Certa vez, depois de ter-me retirado do meio de uma das florestas que rodeavam meu vilarejo entre as montanhas de gelo, fomos até uma bodega, beber vinho e comer dos piores cortes de caça e pães embolorados da região. Eu podia ver nos olhos de meu parceiro, conseguia sentir sobre sua espinha um arrepio ligeiro que se estendia até sua cintura grossa, robusta... Sim, eu pude entender que seus olhos estavam rodeando o salão, como nunca haviam feito anteriormente. Claro, estivemos ali por muitos anos, juntos, crescendo e diminuindo, perdendo partes e ganhando massa, rugas e dentes.
O dono da bodega cortou subitamente o lance de olhares do meu parceiro, e, simplesmente:
-- Mais vinho ou javali?
E confuso pelo calar de seus olhos meu amigo ainda tivera fôlego para responder que sim, claro que queria mais javali, e também muito mais vinho.
O sol havia se retirado há algum tempo, e a noite se fazia presente e pesada. Lembro-me que caia sobre os telhados uma levíssima neblina, talvez uma neve nascente, recém posta para fora do útero de sua mãe.
Vamos para casa meu amigo, pensei eu. E algum tempo depois meu amigo pensara o mesmo; pomo-nos, então, rumo a nossa casa, singela e obscurecida pelas árvores ao redor.
No outro dia, lá estávamos nós novamente, sobre o gelo e as folhas, e mais um lance avermelhado sobre minha face era limpo por um pedaço sujo de pano velho. Apenas o pano não dava conta, então meu amigo me ajudava com um pouco de neve para umedecer meu rosto.
Desta vez ele variou. O nome dela não começava com a letra D, como as duas últimas. Não! Desta vez seu nome terminava com a letra E, isto sim. Fora a melhor dádiva já concedida ao meu amigo. A melhor e maior felicidade. Mas também foi a sua maior fraqueza e frustração. Foi preciso aquele ato, cujo qual eu colaborei firmemente. E no dia seguinte, lá estava eu novamente mutilando árvores, troncos semi-congelados, troncos de carvalho, de freixo, de aço. Isto eu fazia durante o dia, o dia todo, com quinze ou vinte minutos de descanso. Pois, quando a noite se fazia presente e pesada novamente, e o sol já estava se resguardando, cansado, ao invés de troncos de árvores, eu cortava gargantas. Sim, era isto o que eu fazia enquanto a neve caia sobre o vilarejo e as outras pessoas e amigos dormiam silenciosamente. Não importava o sexo, se a pessoa possuía um pênis ou uma vagina. O importante era, na verdade, o olhar da noite anterior sob as luzes cadenciadas daquela bodega fétida.
Uma das pessoas, uma garota chamada Natascha, talvez russa ou búlgara – sim, tinha mais jeito de búlgara –, esta estava praticamente implorando para ser libertada. Seus olhos procuravam o fio de minha boca espelhada.
-- Quando é que vai me levar para dar uma volta por aí? – indagou ela com seu olhar ao meu amigo.
Ele nada respondeu durante alguns segundos. Mas, com seu olhar voltado àquele copo sujo e embaçado por suas digitais, no qual dentro havia um pouco de whiskey, respirou desanimado, e retirou-se do recinto, deixando algumas moedas sobre o balcão. No dia seguinte, a mesma rotina. E na noite que se seguia, lá estava ela novamente: Natascha.
-- Quando é que vai me levar para uma volta por aí, ó lenhador de corpos? – insistiu ela, ainda sem dizer nenhuma palavra.
Ah! eu me lembro muito bem. Sim! Claro que sim. Natascha, uma garota linda, com seus 25 anos de idade, no ápice de sua juventude intelectual, sexual, humana... Com olhos azuis translúcidos, lábios finos e bem desenhados. Com a pele mais pálida que os picos das montanhas do Norte. E mais uma vez meu amigo, grande companheiro, dera as costas aquela adoradora do fio metálico. E mais uma vez, outro nome era inscrito em minha face banhada pelo rubro licor adocicado, e ainda quente. Mas ainda não era aquela garota... Natascha. Ainda não.
Goles famintos de whiskey novamente desciam pela língua até o estômago de meu parceiro diário. Em minha face, além de sangue, agora eu carregava o nome daquela garota, a garota Natascha. Eu sabia que estava chegando à hora de parar. Sim! Estávamos velhos para continuarmos juntos, ele e eu. Eu sabia que hora ou outra nossa harmonia iria ser assimétrica, seria interrompida.
Ah! Natascha... Aquela garota serena, séria, contraditória, era deus e o próprio diabo em um jogo amistoso de xadrez. Natascha tinha o punho firme, forte, mas ainda delicado, porém selvagem como os lobos da neve. Algumas lágrimas despencaram pelo abismo de seu rosto, e um sorriso lindo, com dentes tão brancos quanto sua pele, mas tímidos, deram vida aqueles lábios, e deram uma nova razão a minha existência.
Lembro-me que meu amigo e eu permanecemos unidos durante todo o dia que precedeu aquela noite nova. Nós dois derrubamos algumas árvores, cortamos alguns cervos e os partilhamos com outros companheiros sob a luz da lua e a brasa de uma enorme fogueira.
No entanto, não amanheci em minha cama costumeira. Mas sim em uma bainha de carne, nervos, cartilagem e alguns poucos ossos. É verdade! Uma bainha que possuía um cheiro muito conhecido por mim, com textura cansada pelo tempo.
Lá estava eu, descansando, banhado pelo aposentado sangue de meu amigo eterno, e com Natascha sentada ao seu lado, bebendo em seu copo de whiskey enquanto olhava fielmente à minha face.
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